Uma Verdade Inconveniente: A Catástrofe Climática no Rio Grande do Sul

14/05/2024 20:13

Estamos em uma encruzilhada societária diante dos eventos climáticos recentes e fruto de “uma verdade inconveniente”, como já nos disse há algum tempo Al Gore. Tal fato é corroborado no livro “Os Limites do Crescimento”, publicado em 1972, por Dennis Meadows, Donella Meadows, Jorgen Randers e William W. Behrens, bem como pelo conceito de “irresponsabilidade organizada”, trazido pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, que demonstra a omissão em relação a gestão pública dos riscos, danos ambientais e controle do uso de recursos naturais.

De acordo com Beck, a “irresponsabilidade organizada” ocorre quando os sistemas de segurança são anulados e os riscos legitimados pela negação de sua existência, gerando um estado de invisibilidade, que impede a exposição social das relações de imputação, inviabilizando que causas e responsáveis venham a público.

Para o autor, essa irresponsabilidade somente será superada a partir da concretização de uma democratização ecológica, onde a tomada de decisão acerca de questões centrais para a sociedade combine todas as vozes dissidentes, aliando-se a expertos alternativos e à variedade interdisciplinar.

Quais são alguns dos principais problemas externalizados de impactos ambientais negativos causadas pela humanidade que resultaram na catástrofe climática gaúcha recente?

Os dados científicos do IPCC são precisos em nos dizer que o ser humano tem modificado o sistema terrestre, trazendo uma gestão pífia dos recursos naturais que nos retrata o filme “Ensaio sobre a cegueira” de Saramago, fruto de uma visão de mundo antropocêntrica que corrobora com a apropriação utilitarista da natureza e dos recursos naturais de forma ilimitada. Em resumo, vivemos a época do antropoceno como afirma o geólogo Paul Crutzen.

Os danos ambientais são causados pela má gestão dos bens ambientais: ausência de governança sistêmica e gestão socioecológica, dentro de uma percepção de invisibilidade do desequilíbrio ecológico dinâmico, falta de ética com a Mãe Terra, face aos efeitos transfronteiriços da poluição. Em sentido oposto, os danos ambientais precisam ser percebidos como danos difusos, acumulativos, sinérgicos e transtemporais, que possuem nexo de causalidade com o modo de produção capitalista exacerbado, cuja visão de mundo é antropocêntrica e individualista, em contraposição ao modo de vida em harmonia com os bens comuns e baseado nas relações comunitárias.

Precisamos rever nossa relação com a natureza e olhar a experiência das comunidades tradicionais originárias para visualizar uma perspectiva mais ecocêntrica ou biocultural societária, para aprendermos a ter uma relação mais harmônica com os bens comuns, natureza e comunidade da vida.

Segundo Ferrajoli um dos principais problemas da humanidade é oriundo da gestão de bens comuns do sistema da terra. Tendo em conta que o problema é globalizado, teremos que pensar na diminuição da soberania dos Estados neste tema e na reestruturação dasNações Unidas, criando Instituições Globais de Garantia e Tribunal Internacional Ambiental, com força coercitiva, através da Federação de Estados, propondo uma Constituição da Terra face à encruzilhada societária. Aponta, ainda, os crimes do sistema internacional, principalmente, face aos bens comuns, como a poluição transfronteiriça e externalidades negativas causadas principalmente por corporações.

No mesmo sentido, no caso do Brasil, houve forte fragilização do sistema de proteção ambiental. O recente desmantelamento da política ambiental do país a partir de ações e omissões governamentais pôs em xeque a sobrevivência de relevantes biomas brasileiros, como a Amazônia e o Pantanal, já ameaçados pela crise climática. Diante disso, é essencial a análise crítica das medidas adotadas no plano normativo, para garantir que não só avancemos na proteção do meio ambiente, mas, sobretudo, que não haja mais retrocessos.

É sabido que muitas funcionalidades dos ecossistemas e suas relações permanecem desconhecidas pela humanidade, o que pode levar ao impedimento da regeneração de serviços ecossistêmicos, além de deixar evidente a constante necessidade de que a legislação acompanhe o desenvolvimento científico alcançado pela Ecologia. Desta forma, o reconhecimento pela legislação brasileira, do dever do poder público de propiciar a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais, constitui-se em um marco importante no que concerne à valorização dos serviços ecossistêmicos e que precisa ser priorizado e posto em prática a fim de que possamos lidar de forma mais adequada com as mudanças climáticas e seus efeitos planetários.

Direito e Economia, cada qual com suas peculiaridades, conceberam o mundo como um sistema fechado e estanque, desconectado da realidade dinâmica da vida e comprometido com a manutenção do status quo.  Enquanto a Economia, em sua concepção clássica, desconsiderou a entrada e a saída de materiais (percebendo o mundo como uma fonte infinita de recursos e uma fossa infinita de dejetos), o Direito fechou-se no conceito kelseniano de norma, identificando a juridicidade com a letra da lei, cuja aplicação obedeceria um processo de subsunção lógico-dedutivo, alheio à complexidade e à realidade pungente da vida.

A Economia Ecológica explica as falhas na concepção econômica clássica e mostra um caminho novo, compatível com os limites biofísicos do Planeta em que a ideia de desenvolvimento (aspecto qualitativo da vida) substitui o irrefreável crescimento (aspecto quantitativo que se reflete na insaciabilidade do capitalismo vigente).

Já o Direito Ecológico vai além do Direito Ambiental, em uma mudança paradigmática efetivamente comprometida com o bem comum, que rompe com a racionalidade jurídica clássica e volta os olhos para as possibilidades concretas de transformação social, lançando mão de novas teorias e ferramentas, em uma perspectiva transdisciplinar voltada à compreensão profunda da complexidade.

O problema exige a revisão do nosso modo de vida implicando rupturas da ordem econômica, das corporações, jurídica, dos governantes e do legislativo. Precisamos sair de uma visão fragmentada de gestão para uma visão sistêmica dos bens comuns, das funções ecossistêmicas e sociais, sempre olhando para a evolução de uma justiça ecológica que proteja os mais vulneráveis e fragilizados.

A verdade inconveniente é que sabemos da realidade dos problemas ambientais complexos e integrativos, mas procuramos ocultar os mesmos de forma a parecermos anestesiados com as externalidades e impactos causados pelos danos ambientais e ecológicos, mantendo um sistema capitalista exacerbado e nefasto em relação à comunidade da vida, causando mais injustiças intergeracionais e interespécies.

Um sinal de alento é a solidariedade que vem sendo manifestada pelos gaúchos e demais brasileiros que se uniram em torno da reconstrução do Rio Grande do Sul diante dos efeitos devastadores das mudanças climáticas. Necessitamos ser capazes de unir essa força solidária à uma escolha ecológica diante da encruzilha na qual a humanidade se encontra em face da complexidade dos problemas ocasionados pelas mudanças climáticas emergentes. O regaste de animais é também um fator de esperança para revermos nossa relação com a natureza, pois o certo é que somos parte dela e fideicomissários do condomínio da Terra, precisando urgentemente cuidar da Mãe Terra para evitarmos o seu completo colapso.

Por:

José Rubens Morato Leite

Melissa Ely Melo

Carolina Medeiros Bahia

Giorgia Sena Martins

Artigo publicado por representantes do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco, GPDA/UFSC, DGP CNPq.